Ao
consultar o livro de Maria Adelaide Neto Salvado, sobre a Capela de
Nossa Senhora da Piedade, deparei-me com o nome de Gil Vaz Lobo. Personagem
que foi enterrada no centro da capela-mor da ermita que na altura de
chamava de S. Gregório, e que mais tarde viria a chamar-se, Capela
de Nossa Senhora da Piedade. Tentei
saber um pouco mais do homem que deixou em testamento, as seguintes
disposições:
“Celebração
de 1000 missas por sua alma (200
das quais deveriam ser ditas em altar privilegiado).
Dizia ainda no seu testamento; no dia do seu enterro, todos os
sacerdotes que estivessem presentes diriam missa e recebendo “por
esmola um tostão”;
e igualmente determinou que nesse mesmo dia fosse dada a cada pobre
que o acompanhasse “um
tostão e uma vela”;
e que quando fosse tempo, se transladassem os seus ossos para a
capela da sua quinta de Odivelas e que nesse dia se fizesse, por sua
alma, um ofício com missa cantada”.
Após
alguma procura, encontrei no blog de história militar dedicado à
Guerra da Restauração, o seguinte.
GUERRA
DA RESTAURAÇÃO
Blog
de História Militar dedicado à Guerra da Restauração ou da
Aclamação, 1641-1668
Gil
Vaz Lobo Freire – herói e vilão
Gil
Vaz Lobo Freire, filho de Gomes Freire de Andrade e de D. Luísa de
Moura, foi um dos mais incensados nomes do período da Guerra da
Restauração. Participou com o seu pai no 1º de Dezembro de 1640,
tendo sido um dos nobres insurrectos que procurou no Paço a Duquesa
de Mântua, para a obrigar a abdicar do cargo de Vice-Rainha de
Portugal. Tivesse a Duquesa o dom da premonição, teria razões de
sobra para ficar muito preocupada com o jovem espadachim que lhe
saíra ao caminho, cujas atitudes no futuro – durante a Guerra da
Restauração – demonstrariam uma profunda indiferença pela vida
humana. A par da bravura e valor no campo de batalha, Gil Vaz Lobo (é
assim que é referido em quase todos os documentos) deixaria um rasto
de crimes, que a sua posição social e influência na Corte
conseguiriam, todavia, deixar impunes, livrando-se de condenações
que pareciam tão severas como certas.
O
nobre beirão cedo iniciou a sua carreira militar. Em Fevereiro de
1642 recebeu a patente de capitão de infantaria, passando a servir
em Campo Maior com o seu pai. Em Novembro de 1645 foi promovido a
capitão de cavalos, continuando a servir no Alentejo. A par das
referências elogiosas às qualidades militares do oficial, surgem
alusões ao seu carácter violento e criminoso. Os exemplos que aqui
trago dizem respeito ao ano de 1652, onde num curto período Gil Vaz
Lobo se viu a contas com a justiça por causa de vários crimes. No
início desse ano, um grupo de mulheres de Campo Maior, encabeçado
por uma Catarina Gomes, enviou uma carta ao Príncipe D. Teodósio,
queixando-se da conduta de Gil Vaz Lobo e de outros militares.
Quando, em carta datada de 21 de Março de 1652, o Príncipe ordenou
ao mestre de campo general do Alentejo, D. João da Costa, e ao
auditor geral do exército da mesma província, que abrissem um
inquérito (uma devassa, como então se dizia) aos motivos da queixa,
já era tarde demais. No livro de registos, à margem da cópia da
carta, surge um acrescento recomendando que se iniciasse uma devassa
à morte de Catarina Gomes.
Em
Abril já Gil Vaz Lobo se encontrava na província da Beira, onde o
governador das armas do partido de Penamacor (ou de Castelo Branco,
como também era referido) D. Sancho Manuel pretendia nomeá-lo para
o posto de comissário geral da cavalaria. A carta de 20 de Abril
propondo o nome de Gil Vaz Lobo, enviada ao Príncipe D. Teodósio e
observada no Conselho de Guerra, acabou por trazer à discussão os
crimes recentes do oficial, que não se resumiam ao acontecido em
Campo Maior. No entanto, os próprios conselheiros pareciam dispostos
a fechar os olhos à conduta do capitão de cavalos e inclinavam-se
para a aceitação da promoção, deixando à Coroa a última
palavra. Segue-se a transcrição da consulta:
Nesta
carta apresenta Dom Sancho Manuel a Vossa Alteza a grande necessidade
que a cavalaria do seu partido tem de oficial maior que a governe
porque, por falta dele, tem sucedido e sucedem muitas desordens com a
liberdade que os soldados tomam, e pouco respeito com que procedem
por não terem cabo maior a quem temam, arriscando-se por esta causa
muitas vezes a mesma cavalaria e a reputação das armas de Sua
Majestade e Vossa Alteza quando sucede ir buscar ao inimigo, ou em
nossa defensa, ou em ofensa sua. E por todas estas razões pede Dom
Sancho à Vossa Alteza se sirva de nomear para o posto de Comissário
geral da cavalaria do seu partido a Gil Vaz Lobo porque, por seu
valor e pelo conhecimento que tem daquela campanha, e por suas partes
merece que Vossa Alteza o honre e lhe faça mercê, porquanto a Dom
João Flux [capitão de cavalos alemão], a quem Sua Majestade foi
servido de encarregar o governo dela, lhe sobrevieram tantos achaques
que está impossibilitado por razão deles para exercitar o governo
dela, e incapaz para montar a cavalo, havendo pouco de um ano que o
não faz.
Vendo-se
em Conselho a carta de Dom Sancho, pareceu fazer presente a Vossa
Alteza a resolução que Sua Majestade tem tomado, de que os
criminosos, enquanto não estiverem livres dos crimes que se lhe
imputam, não possam ser providos em postos. E que Gil Vaz Lobo se
livra de alguns crimes no juízo da assessoria deste Conselho em três
processos, um deles sobre a morte de um homem sucedida em Estremoz,
pela qual está sentenciado em final em pena de cinco anos de degredo
para o Brasil e guerra de Pernambuco, e em duzentos mil réis para a
parte com pregão em audiência. Esta sentença se não tem tirado do
processo até agora, nem executada por não haver parte que o
requeira.
Os
outros dois processos são sobre o ferimento feito ao corregedor
Sebastião Vieira de Matos e morte do seu escrivão; estes estando
conclusos a final, se mandou acabar de tirar em Campo Maior certa
devassa de outros casos em que também é culpado, e correr folha em
Elvas, esta diligência há dias que se cometeu por cartas de Sua
Majestade ao mestre de campo general e ao auditor geral em segredo, e
até agora se não tem satisfeito a ela, e por se esperar resposta,
se não acabam de sentenciar estes dois feitos.
Por
ser este o estado em que se encontra o livramento de Gil Vaz Lobo,
pareceu também ao Conselho representar a Vossa Alteza que se houver
lugar de se poder dispensar no impedimento que Gil Vaz tem (conforme
a resolução de Sua Majestade que fica referida) para haver de ser
provido em posto, estando criminoso; e Vossa Alteza tiver por
conveniente habilitá-lo para ir servir de comissário geral da
cavalaria deste partido, será mui bem empregado nele todo o favor e
mercê que Vossa Alteza nisto lhe fizer, por o merecer por seu valor
e pelo zelo com que tem servido, e também por ter préstimo,
experiência e particular génio para ocupar aquele posto. Lisboa 14
de Maio de 1652.
Entre
os crimes cometidos no Alentejo a que a consulta se reporta, um é
certamente o que envolveu a morte de Catarina Gomes, e os outros, os
que originaram a queixa anterior ao desaparecimento da infeliz
mulher. Apesar disso, prevaleceu a influência da poderosa linhagem
dos Freires de Andrade, e Gil Vaz Lobo Freire não foi muito
apoquentado pelos processos em que estava envolvido. Em Agosto de
1659 foi nomeado governador da cavalaria da Corte e comarcas do
Ribatejo, sendo já nessa altura tenente-general da cavalaria da
Beira.
Em
Maio de 1669, mais de um ano após o final da guerra, Gil Vaz Lobo
foi nomeado governador das armas da província da Beira pelo regente
D. Pedro (futuro D. Pedro II). Viria a falecer em Castelo Branco em
1678.
Fontes:
ANTT, CG, Secretaria de Guerra, Livro 16º, fl. 15; Consultas, 1652,
mç. 12, consulta de 14 de Maio de 1652.
Ps.
Seriam as mil missas e as esmolas, uma forma de pagar algumas das
atrocidades que Gil Vaz Lobo cometeu ao longo da sua vida?
O
Albicastrense