sexta-feira, junho 03, 2016

CADERNOS DE CULTURA - "MEDICINA NA BEIRA INTERIOR". (VII)

O AMOR E A MORTE... NOS ANTIGOS REGISTOS PAROQUIAIS ALBICASTRENSES.
                                   
Por Manuel da Silva Castelo Branco

VI - Exéquias Reais em Castelo Branco.
A quebra dos escudos pela morte de D. Maria I.
(Continuação)
Assento 14 (S2 - 50, fl. 114v) - José Manuel Vaz Touro, casado com Maria Joaquina, faleceu de uma apoplexia com o sacramento da extrema-unção e sem testamento, aos 9 de Março de 1823. 
Foi sepultado no cemitério, no mesmo dia, de que fiz este termo que assinei / o Vig° Manuel Domingues Crespo.

Comentário
Eis uma das mais pomposas e concorridas cerimónias fúnebres realizadas em Castelo Branco no decurso de vários séculos e após o falecimento de cada um dos nossos monarcas. 

As exéquias reais compunham-se, geralmente, de duas partes bem definidas: na primeira, de carácter civil, procedia-se à simbólica quebra dos escudos com as armas do soberano falecido; na segunda, de essência religiosa, eram celebrados os ofícios solenes em honra e sufrágio do mesmo.
Embora com um ligeiro arranjo, vamos transcrever o Auto de 27.7.1816, onde o escrivão da Câmara José Manuel Vaz Touro (cujo registo de óbito consta do Assento 14) faz um minucioso relato do que se praticou em Castelo Branco por falecimento da rainha D. Maria I, verificado a 20.3.1816 no Palácio da Boavista do Rio de Janeiro

«No dia 18 de Julho de 1816, data em que recebeu a participação com a infausta notícia da morte da Rainha Nossa Senhora D. Maria I de saudosa memória, logo o Senado da Câmara de Castelo Branco determinou por Acordão do mesmo dia o seguinte:
- Se publicasse imediatamente nesta cidade e lugares do termo que todos os seus moradores tomassem luto por tempo de um ano, sendo rigoroso durante os primeiros seis meses e depois aliviado, em conformidade com as ordens de Sua Magestade, El-Rei Nosso Senhor;
- Fossem avisadas todas as pessoas da Governança, Nobreza e Justiças desta cidade e juízes e procuradores dos lugares do seu termo, para nos dias 25 e 26 daquele mês aparecerem vestidas de luto, usando capas compridas e chapéus desabados com fumo caído, a fim de assistirem às cerimónias civil e religiosa, que se haviam de praticar por tão doloroso acontecimento.
Na forma sobre-dita e pelas seis horas da tarde do dia 25 de Julho, juntaram-se todos diante da casa de residência do Dr. José Mourão, juiz de fora desta cidade, por não estarem capazes os Paços do Concelho e partiram dali em procissão.
Primeiramente, saiu o 2° vereador João da Fonseca Coutinho e Castro de Refóios, montado num cavalo coberto de baeta preta e levando ao ombro o estandarte da Câmara, de luto e a arrastar pelo chão; a seus lados e a pé, iam o alcaide da Câmara e o meirinho do Geral, também de luto e com capas compridas; e logo atrás o porteiro, igualmente vestido e levando nas mãos a vara branca do juiz de fora e as pretas dos dois vereadores. Ao cavaleiro seguiam-se duas bem ordenadas alas, formadas pelos juízes e procuradores do termo, oficiais da justiça (dos Juizos do Geral, Provedoria e Correição), mesteres, alferes e capitães de ordenanças da cidade e termo (convocados pelo seu capitão-mor, Joaquim José Goulão), oficiais dos Regimentos de Milícias desta cidade e de Idanha-a-Nova que então estavam ali estacionados, o comandante Coronel António de Azevedo Coutinho e oficialidade do Regimento da Cavalaria n° 11, almotacés, pessoas da governança e nobreza (entre as quais o Barão de Castelo Novo), o provedor e corregedor da comarca... Fechando a procissão, o dito juiz de fora e os vereadores Francisco António Peres do Loureiro e Fernando da Costa Cardoso Pacheco e Ornelas (levando cada um na mão o seu escudo preto com as armas reais) e eu, escrivão da Câmara, com vara preta derribada.
Finalmente, atrás da Câmara, grande multidão de povo desta cidade e terras vizinhas, que aqui concorreu. Nesta ordem se dirigiu este fúnebre cortejo à Praça, no meio da qual estava uma mesa coberta com um pano preto. A ela subiu o juiz de fora, Dr. José Mourão, para numa digna e curta oração enaltecer a sabedoria, acerto e suavidade com que a Rainha Nossa Senhora D. Maria I governara os seus reinos; e, depois de lamentar a perda de soberana tão virtuosa, quebrou o primeiro escudo que levava, exclamando:
- Chorai Nobres! Chorai Povo! Que é Morta a Senhora Rainha D. Maria I!... 
Por último, exortou os circunstantes a dirigirem ao Todo Poderoso seus votos pelas felicidades de El-Rei Nosso Senhor e, descendo da mesa, recebeu a sua vara branca, que levou inclinada. Depois, continuando a marchar pela Rua de Santa Maria até ao Espírito Santo, Largo da Devesa e Rua da Ferradura, no Largo dela próximo à Porta da Rua do Relógio, subiu à mesa coberta de preto o vereador mais velho Francisco António Peres do Loureiro que, acabando de expor num breve discurso quanto era merecedora do tributo de nossas lágrimas a memória da Rainha Nossa Senhora D. Maria I, quebrou o 2° escudo dizendo as mesmas palavras: 
- Chorai Nobres! Chorai Povo! Que é Morta a Rainha D. Maria I!... 
E, descendo da mesa, recebeu a competente vara preta, que levou também inclinada. Prosseguindo o cortejo pela Rua de S. Sebastião até à Corredoura, junto à Porta da Vila subiu para a dita mesa o vereador mais novo Fernando da Costa Cardoso Pacheco que, em uma bem ordenada oração, expôs, quanto a Nação era devedora ao benéfico governo da soberana falecida e quanto os seus vassalos deviam sentir este fatal acontecimento; e, quebrando o 3° escudo que levava, repetiu as sobreditas palavras: 
- Chorai Nobres! Chorai Povo! Que é Morta a Senhora Rainha D. Maria!... E desceu da mesa, pegando na competente vara, que levou inclinada. Finalmente, caminharam todos na mesma ordem pela Rua dos Ferreiros até à casa do dito juiz de fora, findando assim esta triste cerimónia. 
No dia 26, pelas 9 horas da manhã, se ajuntou e saiu o mesmo cortejo da casa do juiz de fora, que era precedido pela Câmara e em direção à catedral. O vereador João da Fonseca Coutinho, a pé, levava o estandarte arrastado pela rua e o presidente, vereadores e eu, escrivão da Câmara, as suas varas inclinadas. 
Todos se encaminharam para a igreja da Sé desta cidade, aonde a Câmara havia mandado construir uma soberba essa coberta de baeta preta e guarnecida de galões e emblemas da Morte, tendo em cima do túmulo uma Coroa Real. Ali assistiu todo este luzido acompanhamento e imenso povo a um pomposo ofício e missa de defuntos, celebrado pelo Ilmo. e Rmo. Vigário Capitular e Governador deste Bispado, Dr. Manuel dos Reis Soares, assistido por todo o clero secular e regular de 2 léguas de circunferência, que para este efeito tinha convidado, sendo grande o concurso de pessoas de um e outro sexo.
No fim da missa, Rdo. P. Frei Joaquim de S. Martinho, definidor da Província da Soledade, pregou um eloquente sermão, seguindo-se as Absolvições na forma do ritual, a que assistiram todos os eclesiásticos com velas acesas (que a Câmara lhes mandou distribuir). 
Durante a cerimónia, o Regimento de Cavalaria 11, que se achava postado no grande Largo da Catedral, deu as suas descargas. Findas estas piedosas cerimónias, o cortejo recolheu na mesma ordem à casa do dito juiz de fora, manifestando todos no seu semblante o grande sentimento de que estavam penetrados pela lamentável perda da nossa amabilíssima soberana» (21)
José Manuel Vaz Touro, o autor deste relato, nasceu em Castelo Branco a 5.5.1770, sendo filho de João Mendes do Amaral e de sua mulher D. Francisca Bernarda Fragoso. Por diploma régio de 29.4.1803 (22), foi encartado no ofício de escrivão da Câmara daquela cidade, que exerceu até à data do seu falecimento.
Casou com D. Maria Joaquina Alves Fradique que, sendo viúva, alcançou de D. João VI a propriedade do dito ofício para a pessoa que casasse com sua filha primogénita (Lisboa, 23.9.1823)... (23)
(Continua)
                                            O Albicastrense

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