quinta-feira, julho 14, 2016

CADERNOS DE CULTURA - "MEDICINA NA BEIRA INTERIOR". (XVI)

III Parte  
Alguns Episódios da Guerra dos Sete
Anos em Castelo Branco (1762). 

Dois Heróis.
(Continuação)
Assento 36
 - D. Rodrigo José de Torres e Morales, solteiro, da Ordem de Calatrava e marquês de Matallana, tenente das Reais Guardas Espanholas de Infantaria, filho dos Ex. mos Senhores D. Rodrigo Torres, tenente-general da Real Armada, del Consejo e Câmara em o Supremo das Indias e de D. Isabel Ruiz de Ribera Castañeda, faleceu com todos os sacramentos nesta vila e freguesia, quando nela e sua vizinhança se achava o exército de Espanha, a 2 de Outubro de 1762. Foi sepultado no convento de St° António, teve missa e ofício grande do uso da igreja, de que fiz este termo que assinei / O Vig° Frei Filipe Gomes de Santiago
Assento 37
 - Aos 17 dias do mês de Outubro de 1762, faleceu sacramentado D. José Marimon, cirurgião do Regimento de Dragões de Numância do reino de Castela e natural de Mallorca, casado com D. Mariana e moradores na Catalunha. Foi sepultado dentro da igreja e acompanhado com o coro, de que fiz este assento / O Vig° Frei Martinho Gomes Aires. A margem direita: - Neste tempo entrou o exército d’ El-Rei Católico nesta vila, que foi em Domingo, 19 de Setembro do mencionado ano, e nela assistiu até ao Dia de Finados (2 de Novembro).
Assento 38
 - António Lopes Carapetoso, desta vila e casado com Maria Gomes Bicho, faleceu a 25 de Outubro de 1762 com os sacramentos da confissão e sagrado viático, pois os inimigos castelhanos (que se achavam nesta vila e a arruinaram e deixaram em estado miserável) o criminaram de espia do nosso exército e o mandaram enforcar na forca que levantaram na Devesa da mesma vila.
E assim morreu, no sobredito dia do ano de 1762 e a favor da sua Pátria, com boa conformidade e muito cuidadoso da sua salvação, de sorte que me deixou muito consolado pela singular paciência com que se dispôs para semelhante morte. Deixou 25 missas pela sua alma e 5 pela de seu pai e 5 pela de sua mãe Foi sepultado na Colegiada de S. Miguel (de que era freguês) em sepultura de fábrica e teve missa, de que fiz este termo que assinei / O Vig° Frei Filipe Gomes de Santiago.
Assento 39
 - João Hamilton, inglês e tenente do Regimento 3° das tropas inglesas, faleceu sem sacramentos, a 25.12.1762; e foi sepultado na Colegiada por provar-se diante do Rdo. Arcipreste que era católico. Teve missa de presente, de que fiz este termo que assinei/ O Vig° Frei Filipe Gomes de Santiago.
Assento 40
- D. Tomás de Noronha, solteiro e filho do Ex. mo Senhor D. Marcos de Noronha, conde dos Arcos e general desta província, faleceu sem testamento e com todos os sacramentos, a 30.12.1762. 
Foi sepultado no convento de Santo António e teve missa, de que fiz este termo que assinei / O Vig° Frei Filipe Gomes de Santiago.
Assento 41
- O Doutor José Gomes Nunes, médico partidista, filho de Sebastião Gomes e de Catarina Nunes, primo-irmão do vigário que este escreve, faleceu com todos os sacramentos, a 17.3.1763. Fez uma disposição pia em que deixou 130 missas e foi sepultado na Colegiada de S. Miguel, aonde teve missa de presente e o ofício de 9 lições, de que fiz este assento que assinei / O Vig° Frei Filipe Gomes de Santiago.
Comentário
Os registos a cima transladados, dão-nos uma ligeiríssima imagem do sucedido em Castelo Branco a quando da ocupação pelo exército espanhol sob o comando do conde de Aranda, em meados de Setembro de 1762, já na fase final da Guerra dos Sete Anos... A maioria da população albicastrense refugiara-se nos montes vizinhos, temendo a rapinagem e violência dos soldados e estes, à medida que chegavam, distribuíram-se por toda a parte: casas, hospitais, igrejas, conventos, praças, fazendas, e áreas suburbanas, procurando alojamento e mantimentos.
Depois, grande parte do contingente espanhol saiu da vila tentando sem resultado forçar a passagem para Lisboa, que lhes era barrada pelo exército anglo-luso do conde de Lippe. Assim, impedido de avançar, acossados por todos os lados e enfrentando um tempo frio e chuvoso, o conde de Aranda foi obrigado a recolher a Castelo Branco, donde retirou em ordem para o seu país e levando consigo alguns reféns. As últimas forças invasoras saíram da vila a 2 de Novembro, deixando-a empestada e repleta de feridos, destroços e imundície. Muitos doentes acabariam por sucumbir ao contágio, como aconteceu ao filho do conde de Arcos (Assento 40) e ao médico municipal Dr. José Gomes Nunes (Assento 41). Este médico nasceu em Castelo Branco a 8.11.1722, sendo filho de Sebastião Gomes e D. Catarina Nunes.
Frequentou a Universidade de Coimbra, onde se matriculou em Instituta a 1.10.1741 e pela sua aplicação e qualidades obteve a mercê de partidista de Sua Majestades. Ali tirou o bacharelato em Artes a 3.4.1742 e licenciatura em Filosofia e Medicina, respetivamente, a 14.3.1748 e 24.5.1751.
Seguidamente, estabeleceu-se na terra natal, sendo confirmado num dos partidos de médico municipal com 40000 rei de ordenado, por carta régia de 8.1.1755. (42) No exercício deste cargo acompanha dedicadamente os seus doentes durante a ocupação e, sofrendo o contágio da pestilência, dela viria a falecer como um herói, a 17.3.1763.O Assento 38 revela-nos uma outra figura singular, que sacrifica também a vida em prol da sua “terra. Trata-se de António Lopes Carapetoso, nascido em Castelo Branco a 20.10.1719, filho de António Lopes e D. Maria Gonçalves, e casado com D. Maria Gomes Bicho da qual houve geração. Acusado de espia do nosso exército, submete-se dignamente à pena que lhe foi imposta pelo inimigo. Assim, enquanto na Devesa da vila se levanta apressadamente a forca, António Lopes Carapetoso prepara-se para enfrentar a morte com as derradeiras armas de que podia dispor para salvação da sua alma... E na cinzenta madrugada de 25.10.1762, o seu corpo rígido e mudo ficou a balançar na Devesa, não como um exemplo vergonhoso mas qual estandarte cintilante e clamoroso!...
Cerca de 4 anos depois, a 0.12.1766, Frei Filipe Gomes de Santiago vigário da igreja de S. Miguel escreve uma relação pormenorizada do que havia presenciado durante a ocupação de Castelo Branco, a qual passamos a transcrever:
-”Em 18 de Setembro de 1762, pelas 2 horas da tarde, entraram nesta vila os primeiros castelhanos; e logo vieram entrando 3 Regimentos de cavalaria e infantaria, que se abarracaram na Devesa desta mesma vila e nos chãos detrás desta igreja de S. Miguel.
E, dali a 2 dias, entrou todo o exército (que se julgou seria de 40000 homens pouco mais ou menos), foi passando pela Devesa e saindo para a Pipa, Granja e para cima, para a Líria, aonde estaria 15 dias pouco mais ou menos. Ocuparam as casas desta vila grande parte dos oficiais; e o general-chefe conde de Aranda o palácio de Sua Excelência (o Paço do Bispo); e nesta minha casa passal da igreja esteve um primo do mesmo conde, o conde de Ricta, ambos de Saragoça do reino de Aragão. 
Os vivandeiros do exército, que seriam 10000 pessoas, ocuparam com suas bestas todas as fazendas, a que todos deram grande prejuízo, porque logo entraram a desarmar todas as vinhas, latadas e portas, queimando muita madeira delas e das casas (no mais das fazendas não fizeram agora grande dano).
E ocuparam com os doentes, que eram muitos e depois da saída cresceram em maior número, os conventos de Santo Agostinho dos religiosos Gracianos, de Santo António dos religiosos Capuchos, igreja e hospitais da Misericórdia, casas do capitão-mor e outras.
Ocuparam a igreja de S. João com a artilharia e munições dos franceses. S. Pedro, S. Marcos, Espirito Santo, capela da Porta da vila e outras muitas casas se ocuparam com trigos e cevadas, que conduziram em grande número; e tanto que duas vezes fui notificado, para mudar o Santíssimo Sacramento para outra parte, para poderem encher a igreja do muito pão que tinha na Devesa sem haver aonde o recolhessem.
Porém não tiveram efeito as notificações, porque na saída do exército permitiu a
Senhora da Conceição e S. Miguel ficasse Governador desta vila um coronel irlandês chamado D. José, cuja mulher disseram era parente de S. Francisco de Sales, e este ficou nestas minhas casas, (aonde eu com mais dois irmãos me conservei), e ele foi o padrinho que tive para não despejar a igreja, dando conta ao conde de Aranda que estava nas Sarzedas.
 E concorreu também ser a igreja a casa da oração, aonde se diziam muitas missas tanto pelos R. dos Padres que ficaram como por mais de 30 capelães do exército, cuja fidalguia e soldadesca concorria a ela em todo dia , e ser a igreja muito estimada e louvada por todos pois se achava muito asseada e armada com a sua armação de tafetá encarnado, da mesma forma que tinha servido na festa da Senhora da Conceição, em Setembro; e, nela, sendo tão grande o concurso nada faltou, de sorte que não seria preciso esconder algumas peças de prata pelas cimalhas da tribuna. As capelas do Senhor da Piedade e da Senhora da Piedade, em cujo alpendre fizeram seu paredão de pedra, ficaram servindo de Corpos de Guarda; e o mesmo a igreja de Santa Maria do Castelo, aonde parece chegaram a meter alguns cavalos e encheram de palha para dormirem os que nela se recolhiam, com mágoa do seu vigário que também ficou nesta vila, Frei Martinho Gomes Aires, também natural desta vila.
 E ou destas imundícies ou de doentes ou de pão todas as igrejas foram cheias. Só pela graça de Deus e da Senhora da Conceição, a igreja de S. Miguel não ficou apestada como todas as mais, antes se conservou com muito asseio e sempre as chaves estiveram em poder do seu tesoureiro, o P. Manuel Vaz Touro do Amaral, que não me ajudou pouco na administração do Sagrado Viático e Extrema-unção, cujo trabalho era continuado desde manhã até à noite; e, não sendo tanta a caridade dos capelães em confessarem os doentes, certamente morriam pelos muitos que vinham de Vila Velha de Ródão e Sarzedas, às carradas; parece-me não chegariam os mortos que se sepultaram a 150, de que não fiz relação pelo muito trabalho e aflição que se padece em semelhantes tempos, que só quem o experimentar o pode vir a conhecer.
No fim do pouco efeito que acharam os castelhanos em Vila Velha, Sarzedas e Alvito, recolheram todos a esta vila. Como era no mês de Outubro, foi continuada a chuva e muito frio, de sorte que obrigou a recolherem-se a maior parte dentro das casas desta vila e, pela muita chuva e frio, entraram acarretar lenha de oliveira, cortando muitas nas vizinhanças e subúrbios da vila. E neste espaço, que seria de 15 dias, é que fizeram o maior destroço e perdas.
E no dia 2 de Novembro saiu o resto de todo o exército, tendo levantado toda a grande maioria do trem, peão e artilharia nos dias antecedentes, fazendo o seu caminho para Alcântara com bastante medo e tendo tentado passar o Tejo em Malpica para Ferreira, o que não puderam à força da boa diligência conseguir. Não foi pequeno susto que causaram em aqueles que ficaram nesta vila, receando ser levados para Castela como foram muitos destas vizinhanças, eclesiásticos e seculares, de que muito poucos voltaram a este reino. A maior parte da gente desta vila se retiraram para as terras da Serra, aonde não padeceram pouco, sem que porém se possa comparar aos sustos e apertos do coração que padecemos, os que ficámos, que é indizível.
 Saindo o exército, ficou a vila quási apestada, que não morreu pouca gente; e a não vir o conde dos Arcos, que com grande diligência mandou enterrar as muitas bestas que havia mortas e já corruptas por toda a vizinhança da vila, além do despejo que se fez das muitas imundícies que havia nas casas e ruas, certamente seria ainda maior a mortandade. E, nem assim pôde escapar da morte um filho do mesmo conde e, dos dois médicos, um ainda escapou como por milagre e o outro que era meu primo, o Dr. José Gomes Nunes, com efeito morreu no contágio que se seguiu à saída do inimigo. Não especifico aqui as muitas lidas e apertos que se padeceram, de que não coube pequena parte ao pároco desta igreja, porque o que for quando suceda outra (o que Deus pela sua Misericórdia não permita) então se saberá...».
(Continua)
                                            O ALBICASTRENSE

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